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As cortinas dançavam acompanhando a leve brisa da manhã. Raios de sol penetravam pela janela entreaberta, e o clima fresco criava uma atmosfera agradável. A guerreira sagrada se remexia na cama, tentando desviar da claridade, adiando o despertar ao máximo possível.
Não era sempre que Agrias agia assim, pelo contrário: sempre acordou cedo, não importasse onde estivesse. Séria e diligente, cumpria todas as suas funções à risca – mesmo aquelas mais ingratas.
Mas não hoje. Hoje tinha de ser diferente. Hoje, em comemoração, ela simplesmente ficaria ali, remoendo todos os acontecimentos que a levaram até aquela situação, especialmente a noite passada, até que o sol já estivesse no meio do céu. Não se importaria com mais nada, não queria se importar.
Há tempos ela já fantasiava tal momento, mas não sabia se seria correspondida. Imaginou vários modos de se confessar; Chegou mesmo a começar uma carta – por mais infantil ou bobo que parecesse. Mas, qual não foi sua surpresa quando o “alvo” em questão deu o primeiro passo, aproveitando um momento raro de solidão mútua.
“E pensar que tudo começou apenas com um olhar...”
Já havia algum tempo que Meliadoul Tingel fazia parte do grupo. Ramza teve certo problema em ‘recrutá-la’, mas a moça acabou acompanhando-os logo que viu a verdade com seus próprios olhos. No início Agrias não prestou muita atenção no novo membro da comitiva, já tinha problemas demais para resolver – leia-se ‘monstros estranhos aos montes para matar’. Aquela jornada estava mais que perigosa, não havia tempo para decorar nomes e conhecer melhor as pessoas que entravam no grupo. Mas, um pequeno acontecimento fez a situação mudar.
Um certo dia, em uma das várias tavernas que eles paravam para pernoitar, uma festa acontecia. Sem condições para um sono decente, Agrias resolveu sair do quarto e descer para se sentar na mesma mesa na qual Ramza e grande parte do grupo estavam. O rapaz, mesmo sem beber, conseguia ser inconveniente a ponto de fazer a loira querer sair correndo dali com as mãos cobrindo as orelhas, gritando ‘piedade’. Sem muita opção de distração, passou a examinar a todos os presentes no recinto, notando as características e peculiaridades de cada um ali.
A festa adentrava a madrugada, a taverna estava lotada, e a guerreira sagrada já não agüentava mais toda aquela bagunça. Até que, absorta em sua observação – na verdade, caindo de sono - deparou-se com uma figura que destoava da multidão: uma pessoa vestida dos pés à cabeça com uma túnica verde, sentada, quieta no canto. Vez ou outra levava uma caneca à boca; possivelmente de algo não-alcoólico, a julgar pela postura e discrição. Por baixo da túnica notava-se traços de uma armadura dourada, brilhante, que também cobria os braços completamente.
Agrias sentiu um leve interesse por essa pessoa, a única – com exceção dela mesma – a não festejar ou se exaltar naquele ambiente. Pôs-se a observar os detalhes que a distância lhe permitia. Não conseguia ver muita coisa, o cansaço aliado ao sono e à falta de vontade de estar ali prejudicavam sua vista e concentração; além, é claro, das pessoas que não paravam de andar de um lado para o outro na taverna. Mesmo assim, continuou tentando espiar o máximo que podia.
Até que o inesperado aconteceu.
A pessoa vestida de verde se virou, cruzando o olhar com Agrias. Esta corou violentamente, mas não conseguiu desviar o olhar. Olhos puros, limpos.
Um olhar que ela jamais esqueceria.
Difícil dizer quanto tempo ficaram assim, dialogando com os olhos. Talvez segundos, minutos. Talvez um instante. E nesse instante, segundo, minuto, um ato tão simples transformou-se em complicado processo; comunicando, desvendando, revelando sentimentos desconhecidos.
O coração disparou. As mãos deviam estar tremendo. Os lábios entreabertos.
Mas os olhos, estes não se moveram. Nem por um segundo, minuto.
Instante.
Mais alguns dias, e já eram amigas uma da outra. Agrias confessou que tinha confundido Meliadoul com um homem, por causa das vestes pouco reveladoras. De fato, à primeira vista, Méli poderia confundir qualquer um: a túnica verde cobria toda a armadura, ocultando as já pouco fartas formas da moça. E, para completar, ela usava o capuz firmemente preso à cabeça, cobrindo grande parte desta. Claro, o fato de ela se comportar com ferocidade no campo de batalha contribuía ainda mais com uma imagem masculina.
Pensando nestes pequenos momentos, Agrias abriu os olhos e viu a razão de suas tenras lembranças: Méli ainda dormia ao seu lado, indiferente aos sons cada vez mais crescentes da cidade que acordava lá fora. Seus curtos cabelos castanhos estavam bagunçados de uma maneira “fofa” – adjetivo que Agrias não se lembrava de ter usado nem mesmo em sua infância.
“É estranho, comecei a pensar tanto nessas bobagens açucaradas ultimamente. Culpa sua, Méli.”
A loira sorri pensando nisso, enquanto contempla a parceira que repousa à sua frente. Delicadamente, Agrias retira uma pena do rosto da morena, proveniente de um dos travesseiros, e aproveita para acariciar sua pele lisa e perfumada. Meliadoul sorri em resposta, abrindo os olhos lentamente.
- Se aproveitando de mim, santinha?
O infame apelido foi ganho devido à postura de Agrias no início, quando se conheceram. Normalmente a loira era séria e reservada e, à menor menção que fosse de algum termo ou ato mais “quente”, ela corava violentamente e ficava sem jeito. Somando isso ao completo amadorismo da mesma em relação a romance...
- Só te admirando.
- E para isso precisa tocar-me?
- Eu não resisto.
As duas sorriem, levemente ruborizadas. A guerreira sagrada continuou acariciando o rosto da morena:
- Sabe, adoro ficar te olhando assim, de perto. Adoro mergulhar nos seus olhos, me perder neles.
- Hoje você está tão doce...
- Acho que é influência da noite passada. Você foi maravilhosa.
- Você também não se saiu mal para uma santinha.
Ente risos e carícias, as duas se abraçam demoradamente, beijando-se. A atmosfera do ambiente deixa tudo mais confortável, mais gostoso. Como o clima de um sonho.
Mas todo sonho tem seu fim. E o fim veio encarnado na conveniente pessoa de Ramza Beoulve, que adentra o quarto sem nenhum aviso prévio, gritando...
- Agrias, mas que demora! Eu te disse pra...
...e parando ali mesmo, na porta, boquiaberto. As duas moças o encaram com surpresa, e se cobrem com os lençóis.
Constrangedores segundos se passam sem que nenhum dos presentes pronuncie qualquer palavra ou se movimente. Até que, irritada, Meliadoul rosna:
- Ramza, o que é que você está olhando?! Poderia nos dar licença, POR FAVOR?!
Naquele dia a comitiva se atrasou por algumas horas. Agrias praticamente andou em nuvens o dia inteiro. Méli permaneceu de cara fechada, nervosa pela interrupção da manhã. E Ramza nunca mais invadiu um quarto na vida.
Não sem antes bater na porta.
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